2  Conceitos Fundamentais

Esse trabalho é desenvolvido com base num paradigma filosófico de maneira explícita, com o objetivo de informar os fundamentos ontológicos e epistemológicos do projeto, e justificar os métodos de análise adotados. O paradigma filosófico adotado é o Realismo Crítico, que define a ontologia e a epistemologia do projeto. A metodologia desenvolvida é uma abordagem de método misto, em que um modelo teórico é desenvolvido através da perspectiva do Realismo Crítico e aplicado através da teoria dos campos de Bourdieu, e por algoritmos de regressão estatística.

Nessa seção, é feita uma descrição dos conceitos fundamentais do Realismo Crítico, da Teoria dos Campos de Bourdieu, e de Algorítmos de Regressão Estatística.

2.1 Realismo Crítico

O Realismo Crítico é uma linha da filosofia que pode servir como uma base para o desenvolvimento de metodologias de pesquisa (Fletcher 2016). É uma perspectiva que nega a dualidade entre o social e o natural, como também nega a redução do mundo social pelo natural (Gorski 2013), e nem o contrário (Fletcher 2016). O foco desse paradigma filosófico está na identificação e descrição de mecanismos causais (Lawani 2020).

A posição do Realismo Crítico em relação à outros paradigmas filosóficos é de uma alternativa ao embate entre os paradigmas empiricistas e os idealistas (Lawani 2020; Gorski 2013; Bhaskar 2016). O Realismo Crítico nega que a realidade pode ser reduzida ao nosso conhecimento sobre ela, ou seja, a redução da ontologia à epistemologia (Bhaskar 2016), além disso, também nega que a realidade é inteiramente uma construção da percepção humana Lawani (2020). Para evitar o que Roy Bhaskar nomeou de falácia epistêmica (redução da ontologia à epistemologia) (Bhaskar 2016), o Realismo Crítico defende que existe uma realidade que existe independente da nossa percepção sobre ela, e que não é completamente acessível à nossa percepção.

De acordo com o Realismo Crítico, existem três domínios da realidade: o , formado pelos que atuam como forças que produzem eventos (Fletcher 2016); o , que contém a realização do domínio real, quando os mecanismos generativos são ativados, e ocorre independentemente se essas realizações podem ou não ser percebidas ou medidas; o , onde os eventos causados pela ativação dos mecanismos generativos do domínio real são percebidos ou medidos.

Segundo o Realismo Crítico, a realidade também é composta por camadas, que vão desde um nível mais baixo (micro) como os mecanismos físicos, até níveis mais altos (macro) como os mecanismos sociais. As camadas da realidade não são independentes uma das outras, porém, nenhuma tem o poder de determinar a outra. Isso quer dizer que cada camada da realidade opera segundo seus próprios , mesmo que de maneira dependente de mecanismos de outra camada. Essa propriedade das camadas da realidade é chamada de emergência (Pratten 2013; Danermark 2002). Como exemplo, Danermark (2002) ilustra esse conceito através do seguinte cenário em pesquisas sobre deficiências auditivas: a ocorrência de uma certa deficiência auditiva é causada por mecanismos no nível biológico, porém, a experiência de uma pessoa em relação à essa deficiência é resultado de mecanismos do nível psicológico. Portanto, duas pessoas com amesma deficiência auditiva irão ter experiências diferentes, ou seja, os mecanismos do nível biológico afetam, mas não são determinantes dos mecanismos do nível psicológico.

O desenvolvimento de conhecimento ocorre por meio da interpretação de padrões e tendências de eventos percebidos e medidos, com o objetivo de explicar os fenômenos de interesse pelos que os determinam (Lawani 2020; Wynn e Williams 2012). Porém, todo o conhecimento gerado sobre os mecanismos geradores (que operam no domínio do real) são uma produção social e serão sempre falíveis. Nesse aspecto existem dois conceitos de importância no Realismo Crítico, a dimensão intransitiva, que é a realidade que existe independente da percepção humana, e os conhecimentos falíveis que desenvolvemos sobre essa realidade, chamado de dimensão transitiva (Danermark 2002; Gorski 2013).

Em resumo os conceitos fundamentais do Realismo Crítico, explorados nesse trabalho, são:

  • Divisão da realidade em domínios ontológicos: o domínio real, o domínio atual e o domínio empírico;

  • Estratificação da realidade em camadas emergentes: nível social, nível psicológico, nível biológico, entre outros;

  • Existência de uma realidade independente de nosa percepção sobre ela: a dimensão intransitiva;

  • A construção de conhecimento sobre a realidade é sempre falível: dimensão transitiva;

A consequência final da adoção do Realismo Crítico em um projeto de pesquisa, é que o desenvolvimento de um conhecimento sobre certo tema estará sempre em desenvolvimento e sob constante avaliação crítica.

2.2 Teoria dos Campos de Bourdieu

A teoria dos campos de Bourdieu é um método de análise que descreve arenas sociais em que disputam entre si por alcançar um objetivo em jogo, interagindo com outros agentes para atingir suas metas (Kluttz e Fligstein 2016). Bourdieu é um reconhecido sociólogo que influenciou a Teoria Sociológica de Campo, tendo desenvolvido os conceitos de , , e doxa. Sua teoria é amplamente aplicada em diversas áreas de estudo devido à sua natureza generalizada.

O conceito de , na perspectiva de Bourdieu, é que os campos são arenas de disputas entre diferentes (Kluttz e Fligstein 2016). Os agentes sociais ocupam uma determinada posição no campo, definida por diferentes formas de , e estão em disputa por um objetivo em jogo (Thomson 2014). Cada campo funciona de acordo com sua própria lógica ou, em outras palavras, apresenta “regras do jogo” específicas (Kluttz e Fligstein 2016; Thomson 2014).

O é a manifestação de diferentes tipos de poder, que pode ser econômico, cultural, social ou simbólico (Kluttz e Fligstein 2016).

O é uma propriedade dos que, juntamente com o e o campo, molda as práticas desses agentes sociais (Maton 2014). Ele descreve um processo dinâmico de ação realizado no , formado por construções subjetivas e disposições objetivas, em um sentido em que o habitus desses atores sociais é afetado por e também afeta as estruturas sociais de um campo (Kluttz e Fligstein 2016).

A doxa pode ser considerada como regras implícitas que operam em um . É o resultado de conquistas de que estabelecem regras, leis, formas discursivas, crenças normativas, ações e comportamentos esperados e barreiras à entrada em um campo específico (Deer 2014).

2.3 Análise Estatística

Na análise estatística, modelos de regressão são utilizados para determinar um suposto efeito de variáveis explanatórias (independentes) sobre uma variável de resposta (dependente) (Fahrmeir et al. 2013; James et al. 2021). Em uma regressão linear simples, essa influência é representada por uma função que descreve uma linha, essa função é a determinação do efeito das variáveis explanatórias sobre a média condicional da variável de resposta (componente sistemático), mais os devios observados em relação aos valores esperados por essa função (componente aleatório) denominados como erros aleatórios (Fahrmeir et al. 2013).

A complexidade de modelos de regressão vai muito além de uma regressão linear simples, entre uma variável explanatória contínua e uma variável de resposta também contínua. Modelos de regressão podem determinar relações não lineares de diversas variáveis explanatórias, de diversas naturezas, sobre uma variável de resposta de diversas naturezas.

No caso da modelagem estatística de fenômenos complexos, como é o caso da ocorrência da , modelos de regressão lineares podem falhar na descrição da complexidade da relação entre as variáveis explanatórias e a variável de resposta. Nesse caso, modelos com pressupostos mais flexíveis que os de regressões lineares clássicas, podem ser mais apropriados, como é o caso de Modelos Aditivos Generalizados (GAMs), que permitem representar relações não lineares entre as variáveis explanatórias e de resposta (James et al. 2021; Fahrmeir et al. 2013). Porém, no caso dos GAMs, interações entre variáveis explanatórias não são levadas em consideração, exceto no caso dessas interações serem manualmente representadas como variáveis adicionais ou funções adicionais (James et al. 2021).

Algumas opções de escolha de modelos, ainda mais flexíveis que os GAMs, são o Random Forest (RF) e o Boosting (BDT), que são completamente não paramétricos (James et al. 2021; Berk 2006). Ambos são derivados do modelo de Árvores de Decisão (DT). Os modelos baseados em DT funcionam através da partição dos dados em análise de maneira sucessiva, que normalmente tem a descrição gráfica na forma de uma árvore invertida (Ville 2013). As vantagens desses tipos de modelos são a sua flexibilidade e facilidade de interpretação de seus resultados. Porém, é reconhecido que DTs geralmente sofrem por apresentarem uma menor acurácia de predição da variável de resposta. Alternativamente, RFs e BDTs são possíveis opções que normalmente apresentam maior acurácia de prediçãodo que DTs (James et al. 2021; Biau e Scornet 2016).

Referências

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James, Gareth, Daniela Witten, Trevor Hastie, e Robert Tibshirani. 2021. An Introduction to Statistical Learning: with Applications in R. Springer Texts in Statistics. Springer US. https://doi.org/10.1007/978-1-0716-1418-1.
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